A Rádio Que Orgulha o Chão Farrapo!!!
Home » » O ciclo do gaúcho a pé: Estrada nova

O ciclo do gaúcho a pé: Estrada nova

{[['']]}
O ciclo do gaúcho a pé: Estrada nova
Cícero Galeno Lopes

Instigados pelas liberdades técnicas e ideológicas do denominado Pré-modernismo, os brasileiros entraram no Modernismo com a confiança necessária a reflexões sobre a condição do homem comum, com discursos correlatos. Ideologizados os textos a partir do pensamento marxista, instaura-se o romance de trinta. Herdeiros de Lopes Neto e Amaro Juvenal, os gaúchos elaboraram discursos literários definitivos à época. Admirador especialmente da obra de Alcides Maya, Cyro Martins empreendeu rupturas e construções textuais a partir das obras desses autores. Da obra do construtor da figura do gaúcho a pé, focalizam-se aqui cinco páginas finais de Estrada nova (Movimento, 1975, p. 187-191). Procuro destacar cinco passagens que se sequenciam. O objetivo é identificar sinais semânticos que marquem ideologicamente, no romance, o fim dum tempo e a promessa doutro.

Atrás do galpão, o negrinho da cozinheira não estava brincando de estância e, se o fazendeiro o surpreendesse naquele momento, não desconfiaria que ele sonhava em ser um dia seu igual, dono de léguas de campo e de milhares de cabeças. Ele estava brincando, mas era de polícia. Prendera um comunista e judiava dele para que confessasse a quem tinha matado e roubado ou a quem planejava matar e roubar. Já lhe havia dado muitos coronhaços na cabeça, posto de braços estendidos, estaqueado dois palmos acima do chão, atirado num lagoão fundo com uma corda no pescoço, numa madrugada fria [...]. Inocências vingativas de criança!... Durante o dia, a conversa no galpão fora só isso. O Lobo, então, se esparramou contando proezas de crueldade. O negrinho ouviu tudo aquilo atento, meio se escondendo, [...] sem fôlego, num susto só, e ficou depois o resto do dia imaginando o outro lado das coisas... (p. 189). (Grifos meus.)
Essa é a primeira. O personagem escolhido é o que ocupa o último lugar na escala do poder, na estância. Os exemplos que toma para se estabelecer melhor na escala do poder são episódios narrados por Lobo. (Não se desconsidere o nome do personagem). Lobo acumula duas atividades: é subprefeito e policial, a serviço de quem possa ajudá-lo a manter-se no poder. O guri construía imagens de riqueza e poder unidas, e o poder estava, nessa construção, ligado à violência. O tempo da submissão hereditária estava, por essa reflexão, sendo apagado. A consciência acerca da condição humana nascia como consequência dessa ideologização.

Manuel, um mensual novato, vinha a trotezinho rumo às casas tocando por diante uma vaca com o terneiro abichado. Saíra pra o campo, sem que o capataz o mandasse, de propósito, para pensar. Voltava decidido a pedir arreglo de contas. Ficara amedrontado com o que vira e ouvira na fazenda aquele dia. Não ia dizer pra ninguém o motivo de ir embora [...] e se mandaria sorrateiro, na madrugada seguinte, a pé, porque nem cavalo tinha. Manuel nunca saíra daquelas imediações. Era cria de por ali nomais. Nascera [...] atrás daquele cerro, um pouco adiante do finado umbu da Estância Velha. Tinha dezenove anos, não servira ainda no exército e talvez nem viesse a servir, porque não era registrado. Não conhecia letra, não conhecia mulher, não conhecia outros pagos. Seus pés nunca viram botas. O índio-vago, que se escondia naquela aparência de songamonga, acordara de repente. Manuel resolvera correr mundo... Pra onde e por onde? Pra bem longe, por esses cafundós do deus-dará! Quem sabe se pelo município do Alegrete?!... (p. 189). (Grifos meus.)
Essa é a segunda. O peão reponta uma vaca com terneiro abichado, em direção às casas (para tratá-lo). Se a passagem for lida como parte de alegoria, ela participa da elaboração, entre outras diversas indicações, dos sintomas de início de fim duma época. O romance remarca isso. Não é a vaca que está doente; é o terneiro: ou seja, não é do passado nem da origem que se deve cuidar, mas do presente histórico. O rapaz é designado, na entrada do último parágrafo da segunda sequência, como “índio vago”. Índio-vago é o gaudério, o andante, sem paradeiro, sem local definido de fixação. Noutras palavras: a designação revela sua condição de empregado ocasional, embora seja “mensual novato”. Mensual indica emprego melhor que diarista (changueiro), mas o adjetivo novato lhe esclarece a condição recente. O peão acorda de repente. Manuel se dá conta do que também o guri percebera, como foi possível expor anteriormente. O alcance é mínimo (porque as alternativas são mínimas), mas os submissos começam a pensar. Ambos, o menino e o rapaz, começam a planejar mudanças em suas condições. São sinais que apontam a núcleo temático que percorre a narrativa: os sinais de início de fim de uma época social na Campanha. Manuel nasceu ao lado daquele cerro, o mítico e lendário Jarau. Ali teve início a estirpe gaúcha, segundo nos conta Blau. Ao afastar-se do lugar, ainda que seja para mover-se até Alegrete, município que divide a região do cerro com Quaraí, o peão abandona o ponto de origem. Doutra maneira dito: pensa em deixar o passado ou recomeçar diferente. Mais uma vez, surgem indícios de que a situação é de início de fim e de possibilidades novas. Manuel nasceu “um pouco adiante do finado umbu da Estância Velha” (do coronel Teodoro). Esse umbu aparece na obra como simbólico do poder: a morte dele simboliza a morte do poder até então seguro em estruturas fortes. O umbu tem robustas raízes. O umbu vem abaixo por ação do tempo (cronológico e meteorológico); o poder estabelecido desfaz-se por ação tempo (cronológico). As coisas não estão no espaço, mas no tempo, como também ensinou outro Cyro, contemporâneo do nosso, o dos Anjos. A trama semântica, então, já revela indício de fim. Manuel não conhece quase nada da vida, mas, como o narrador revela o pensamento de Teodoro (p. 187), refletindo sobre seus filhos: “qualquer voz secreta lhe dizia que, [dali] por diante, seria preciso aligeirar o passo, para não tropeçar”.

Teodoro, durante a vagarosa caminhada que empreendera ao redor do estabelecimento para arejar a cabeça, depois de muito perguntar coisas a si mesmo, tomara uma resolução grave. Ia fazer como a maioria dos fazendeiros – se mandar de muda para a cidade e só viria ali de vez em quando, de visita, por dois ou três dias. Miguel conhecia muito bem o seu sistema e cuidaria da fazenda com capricho. De volta, parou um momento na porta da frente, olhando o poente, mais calado que antes. Que saudade do seu umbu! Em seguida, dando as costas para os tormentos e sentindo-se mais firme nos estribos, entrou. Logo avistou Dona Almerinda sentada na cadeira de balanço, no pátio lajeado, tomando mate doce servido por Anastácia. Os ponteiros do relógio de Dona Almerinda estavam parados! Seria oportuno comunicar-lhe naquela hora a sua decisão? Ela parecia calma, o pensamento longe, decerto nos filhos, uns ingratos. Por que não deixá-Ia aninhada na sua quietude, depois de tantas tormentas, umas sobre as outras? [...] Era uma vergonha, mas, pelo menos para ele mesmo, não devia calar o sentimento. Estava com vontade de chorar. Chorar por conta da mudança, da saudade que iria sentir da sua casa, daqueles descampados, do seu umbu, dos seus cavalos, alguns envelhecendo junto com ele... Do seu prestígio perdido e, sobretudo, da sua fama de homem bom que se fora águas abaixo! (p. 189-190).
Essa é a terceira. Nessa passagem, encontra-se reflexão a respeito do fim da convivência dos proprietários com seus auxiliares (peões e ajudantes, como se diz na região). Saem do campo os pobres, por motivo explícito no romance; foram saindo também os proprietários, por outros motivos. Os filhos do coronel Teodoro já fazia tempo tinham abandonado a Campanha. Eis, então, que se apaga o último (e marcante) resquício da vida anterior. Outro sinal inequívoco do que se tem denominado êxito rural, como está analisado em Estrada nova. Janguta, a mulher e a filha caminhavam dês das quatro da tarde e ainda se encontravam distantes da última divisa do Coronel Teodoro. Iam agora enterrando os pés nas cinzas do campo queimado. [...] A mancha negra, vista a pé, impressionava muito mais. Dava medo, pela imensidão. A invernada de luxo do Coronel transformara-se num deserto, sequer um ruído de bicho entre macegas. Nenhum cavalo, nenhuma rês, nenhuma avestruz naquela terra queimada, nenhum dorminhoco gingando naquele vôo de se desmanchar no ar saturado de cinza. Eles pestanejavam, esfregavam as vistas, tapavam o nariz, apuravam os passos, que rendiam pouco. O chapadão não tinha fim. Janguta, de fôlego curto, sentia a canseira aumentar. Era como se estivesse se afogando num mar de cinzas. As mulheres, mais fortes, se adiantavam. Viam o sol morrer, na tarde calma, num esbanjo de cores que era um mistério (190-191). Essa é a quarta sequência. O incêndio da invernada parece apontar ao fecho das sequências indicativas de início de fim, ou seja, sugere indícios do fim. O incêndio é o ponto-final simbólico da época. Vislumbra-se, por entre a fumaça desse, outro incêndio famoso: o do Ateneu, provocado pelo estudante Américo (também nome sugestivo). (É expressiva a descrição do entardecer – do dia e do tempo – sobre o campo queimado. A morte do sol, em tarde calma, traz mistério de cores. Para além da composição alegórica, esse período sintático (último da citação imediatamente anterior) esbanja, de fato, sugestividade. A morte da luz (que brilha há muito tempo) traz novas cores... Repito a frase: “Viam [Janguta e a família] o sol morrer, na tarde calma, num esbanjo de cores que era um mistério”. Não é nada menos que a sugestividade que estabelece a condição poética do texto.) Revolução é desencadeamento forçado da evolução. Tudo evolui no mundo, mas, para poder ver e usufruir a evolução quem a provoca, é forçoso instalar a re-evolução. A sequência em questão, portanto, fecha o ciclo dos sinais de fim de época.

De repente, Janguta ergueu a cabeça, encorajado por uma lembrança. Recordara-se de Ricardo, das suas conversas, das idéias que tinha, sobretudo da sua esperança. Quando viriam os homens dos quais ele falava com tanta crença? Aqueles homens que, como dizia Ricardo, pensavam na gente e que um dia viriam pela estrada nova, a galope, alvissareiros, cortando os campos verdes, acordando os pagos, anunciando uma fartura de verão chuvoso, enriquecendo de alegria o•coração dos pobres! (p. 191).
Essa é a quinta e última sequência que destaquei. Nela se lê que está destruída a condição anterior; eis que se vislumbram sinais da estrada nova.

Fonte
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/

Colaboração: Alan Otto Redü
Share this article :

Ouça ao vivo

Curta no Facebook

 
Registrado © 2013. RádioTertúlia.com - Piratini/RS - Todos os direitos reservados